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Fev
27
2017
António Coimbra de Matos: “Não é fácil amar, mas é bom. E se não se amar não se vive”
O amor, a saúde, a doença, a vida e a morte. Nome maior da psicanálise, continua a estudar e a tentar compreender a condição humana. Aos 87 anos continua focado no futuro.
Fez do amor o seu Deus, dedicou a vida a estudar um dos lados mais negros da vida, a depressão. E promete continuar, a estudar, a investigar, a guiar os seus pacientes como se fosse um farol e um catalisador. António Coimbra de Matos, 87 anos, viúvo há quase um. Médico psiquiatra, mas, sobretudo, o psicanalista português que mais se destacou, mantém o mesmo gosto em conversar. Como se ainda estivesse a dar aulas na Faculdade de Psicologia de Lisboa, no ISPA, ou a dar conferências. E o gosto em ouvir, como se tivesse à sua frente um paciente deitado no divã, sem o julgar ou criticar.
Como é que um otimista se interessa pela depressão?
Comecei a ver através dos meus pacientes que as teorias que havia — mesmo na psicanálise — não explicavam bem o fenómeno. E comecei a procurar eu próprio. Há uma coisa que, geralmente, é confundida pelos psiquiatras e pelos psicanalistas com a depressão que é o luto. Freud dizia que a depressão é um luto patológico. O luto é uma reação perante a perda real de uma pessoa, o paradigma é a morte de uma pessoa amada. A depressão é a reação perante a perda do afeto de uma pessoa. É a rotura afetiva.
Parece uma fronteira ténue entre luto e depressão.
Há depressões normais e depressões patológicas. E lutos normais e lutos patológicos. O luto normal é de memória e de substituição. Eu vou-me esquecendo do meu pai que faleceu e substituo por um professor, amigos mais velhos. E há lutos patológicos, em que fico eternamente a pensar que me faz muita falta o meu pai que já morreu. A depressão é a mesma coisa. Nas normais, quando perco o afeto de uma pessoa importante para mim, deprimo. Mas na depressão patológica atribuo a culpa a mim.
A depressão é transversal a todas as classes sociais?
Sim, mas aumenta com o sentimento de opressão, de que se está limitado. A pobreza aumenta a depressão, é a falta de esperança.
Somos um povo deprimido?
É difícil fazer estas generalizações. Portugal tem uma coisa particular na sua história: os homens saíram. Foram para as guerras, para o mar, para as conquistas. E os filhos foram mais educados pelas mães, ficaram um bocado meninos das mamãs. Hoje é diferente, mas ainda há essa influência. Portugal não passou pelo feudalismo, houve sempre um poder central. De certo modo, o poder patriarcal não se fez muito sentir porque era delegado numa instância distante, que a maior parte das pessoas não conhecia nem tinha visto. Somos também um país de emigrantes, muitas pessoas ficaram sem pai. Mas também não sei se somos deprimidos.
Seremos nostálgicos?
Talvez. Na medida em que os pais partiram. Somos um país um pouco de órfãos.
E de brandos costumes?
Os outros reagem muito mais que nós. Somos pouco revoltados. E uma das lutas contra a depressão é a revolta. Se a minha namorada me abandonar, eu reajo com depressão mas também com raiva. ‘Ai que estupor de gaja, que puta, que me largou.’ E a revolta para nós é abafada.
Ficamos a remoer por dentro. Isso não parece saudável.
Pois não. A revolta é o grande remédio para a depressão. Começamos a melhorar quando nos começamos a revoltar. Há um estudo interessante do Durkeim, da primeira década do século XX, que diz que nos grandes períodos de guerra, os suicídios diminuem. Porque a revolta é permitida.
Mas será que também aceitamos tudo?
Somos um bocado passivos. Não somos nem muito revoltados, nem muito críticos, nem muito opositores. Isso também tem as suas vantagens. Os espanhóis não conseguiram o que nós conseguimos com os mouros. Afonso Henriques conseguiu o que conseguiu porque não matava os chefes mouros, eles eram feitos governadores civis. Ele vinha por aí abaixo, conquistando território, sem grande exército, e foi mais ou menos aceite.
Isso parece um traço comum até agora.
Somos uns engenhocas. Sabemos lidar com as situações. Só tínhamos um milhão de habitantes e conquistámos parte do mundo.
E depois há o outro lado. Somos dos países em que mais se prescrevem medicamentos para a depressão.
O que há é uma submissão muito maior da indústria farmacêutica. Nos anos 60, eu era psiquiatra no Hospital Júlio de Matos, o número de especialidades vendidas em Portugal era 60 mil, e, na Dinamarca, 4 ou 5 mil. O Estado não permitia que a propaganda tivesse o impacto que tem aqui. Os médicos são muito influenciados. A indústria farmacêutica dá prémios, paga congressos.
Então como é que se trata a depressão?
Em alguns casos graves, será necessária alguma medicação. Mas fundamentalmente pela reestruturação da pessoa pelo meio psicoterapêutico, restaurar a autoestima ferida. É que no luto a autoestima não é atingida, na depressão é. Isso já Freud tinha reparado. É um trabalho demorado, difícil. Nem sempre é necessário uma psicanálise, no divã, pode ser psicoterapia face a face. Depende dos casos, se é mais ligeiro, mais recente, consegue-se tratar face a face.
Trata-se conversando?
Não é só conversa. É perceber como é que a pessoa se deprimiu e como é que pode sair disso. A psicoterapia esteve muito presa às causas, hoje pensamos nisso, mas sobretudo nas soluções. O que é que a pessoa pode fazer para sair da depressão. Levar a pessoa a perceber que aconteceu aquilo, mas a vida não acaba aí. Há outros interesses, o futuro.
Ao contrário dos clássicos, está mais virado para o futuro?
Aos alunos dizia que a psicanálise antiga era como o condutor que estava sempre a olhar pelo espelho retrovisor. Ora, eu quando vou na estrada tenho de olhar para a frente.
A solução, a cura, está dentro de nós?
Está. Mas o analista não é, como se julgou durante muito tempo, um guia, um orientador, um pai, um professor, um padre. Costumo defini-lo em duas funções: de farol, que ilumina e deixa o paciente escolher o seu caminho; e de catalisador, capaz de procurar o processo de mudança, com possibilidade de sucessos.
Os pacientes têm de se abrir mais na psicanálise?
O psicanalista tem de ter uma atitude tal que o paciente sente que se pode abrir. Dou-lhe um exemplo, uma paciente minha de há dois ou três anos tinha feito análise com um psicanalista anterior, e não se deu bem. Veio para mim, ao fim de duas ou três semanas contou-me um problema da vida íntima (uma traição). E disse-me: “É estranho, estou a contar isto e nunca consegui contar ao analista anterior.” Tem de se ter a capacidade de ser um bom ouvinte, que não critica, não castiga, leva o paciente a abrir-se. Ser suficientemente sensível para aceitar pôr-se na pele do paciente. É a chamada empatia, mas isso não chega. É pôr-se na pele do paciente e ter a resposta afetiva adequada, que não seja culpabilizante nem desvalorizante. Uma paciente que tive — também já tinha feito análise antes — dava-se mal com o marido e começou a dar-se bem com um colega de trabalho. Ela chega um dia à sessão e começa com um silêncio, a dizer que tem uma coisa para contar e que não sabia se podia contar. Às tantas, conta-me que tinha ido para a cama com o tal colega. E eu disse-lhe que isso são coisas que acontecem. Ela saiu-se com isto: “Que alívio. Já estava a ver que ia ser como a minha mãe, que me diz és uma doida; ou como o anterior psicanalista, que me dizia lá está você a passar para o outro lado.” Era a consequência natural de não se sentir bem amada com o marido e de sentir uma relação mais harmoniosa com este homem.
Há limite para não criticar o analisado?
Em princípio, o paciente tem sempre razão. Vamos ver é se essa razão é total ou se não. Se ele fez qualquer coisa, lá tinha os seus motivos, a sua razão. Vou procurar essa razão, antes de julgar pela minha razão. Se um paciente me diz que bate todos os dias no filho eu fico um bocado irritado, mas devo pensar: ele deve ter alguma razão. O filho faz-lhe ciúmes porque é mais inteligente do que ele? O filho faz-lhe lembrar alguém de quem ele não gostava? Não se deve começar logo por criticar qual é a razão do paciente. É tentar compreendê-lo. Não há pacientes resistentes, há analistas incompetentes. Lembro-me de um texto antigo, de um discípulo de Freud, Wilhelm Stekel, que tem um livro, de 1911/12, que se chama “A Mulher Frígida.” E acaba com um parágrafo em que diz: mulheres frígidas não existem, o que existem é homens incompetentes.
Leva os problemas dos pacientes para casa?
Não propriamente os problemas. Não há dia nenhum que não escreva, a partir dos meus doentes. Faço isso à noite, depois de jantar. Uma das coisas que consola é o doente saber que o psicanalista está interessado nele, não se esquece e pensa nele. Vou contar-lhe um caso, outra paciente, que também era uma segunda análise. Tinha uma parte depressiva, que não tinha sido resolvida. Há uma altura em que vai passar uma semana a Londres e, quando chega, diz-me que me tinha dado umas férias. Respondi-lhe que estava enganada, durante essa semana, pensei e cheguei a conclusões que foram úteis para a conclusão do caso. É importante que o psicanalista pense nos seus casos fora das sessões, porque há coisas que não se percebem naquele momento.
Tem um livro intitulado “Relação de Qualidade — Penso em Ti”. Está sempre a pensar nos seus doentes?
Não faço disto uma obsessão. Isso é importante porque é uma das causas da depressão. Já reparou que quando os namorados se despedem no aeroporto ambos dizem: não te esqueças de mim. É a importância que o outro nos leva, que o outro pense em nós, que o outro exista. Ou que nós existamos para o outro. Durante muito tempo pensou-se que o importante era a introjeção do objeto, tenho a minha mãe, o meu namorado, dentro de mim. Mas mais importante é eu ter a certeza que estou no interior do meu objeto, que a minha mãe pensa em mim, que a minha namorada pensa em mim. Chamo-lhe a constância do sujeito no interior do seu objeto. Aliás, tenho um livro que se chama “Vária. Existo Porque Fui Amado”.
Como?
Acho que fui bem amado pela minha mãe, pelo meu pai. Eram pessoas diferentes. A minha mãe gostava muito dos filhos, éramos quatro, agora somos três, a minha irmã já faleceu. Era uma pessoa mais controladora, mais beata. O meu pai também se interessava por nós, mas era um homem mais livre, com mais saúde mental. Gostava de coisas novas, de conviver, de inovar.
É difícil amar?
Não é fácil, mas é bom. E se não se amar não se vive. Tive uma analisanda — professora de psicologia — que um dia me disse que tinha descoberto que eu era religioso, que o meu deus era o amor. Acho que é verdade. É a coisa que nos mantém, que nos entusiasma e pelo qual vale a pena lutar.
Como sabemos se é amor verdadeiro?
É um amor oblativo, que se propõe a dar. Mais do que captar. As relações são boas quando são recíprocas. No amor, na amizade, nas relações pessoais evoluídas, o mais importante é a pessoa. Enquanto que em relações mais primárias, mais biológicas, o que interessa é o que a pessoa nos dá. Uma coisa é eu gostar daquela pessoa como pessoa, e gostar de estar com ela, da companhia dela, de fazer projetos com ela. Outra coisa é estar a pensar em ir para a cama com ela.
E sentimos isso no coração ou é o cérebro que nos diz?
É cerebral e no corpo. Uma inundação de ocitocina. É um conjunto de felicidade, bem-estar.
Porque é que não se pode amar duas pessoas ao mesmo tempo?
O amor é bastante exclusivo. Embora isso seja também uma coisa cultural. O homem é fundamentalmente monogâmico. E a mulher mais que o homem. Há um problema que também tenho estudado, a relação tem de ser criativa. Se vão sempre jantar ao mesmo restaurante, se vão sempre ao cinema, com os mesmos amigos, a relação torna-se monótona, chata. Tem de haver inovação, temos necessidade de coisas novas. A monotonia mata.
Mas há pessoas, mais homens que mulheres, que dizem que a amante faz bem ao casamento ou que não o afeta.
Não só homens. Lembro-me de duas pacientes, uma tinha um marido e um amante, gostava muito do marido e da vida sexual com o amante. E a outra tinha vários.
Não teriam sido mais felizes se tivessem ficado só com um?
Temos de admitir que não conseguiram ficar com uma só pessoa e também não temos o direito de estragar aquela estabilidade. Não sabemos se pode surgir uma coisa melhor, também pode surgir uma coisa pior.
Isso é saudável?
É um estilo de vida. Não me parece que seja o mais fácil em ter sucesso, em que a pessoa se sinta sempre bem. Por exemplo, a que tinha o amante estava sempre cheia de culpa. A que tinha os amantes, com medo de ser apanhada.
A sexualidade é uma forma de compensação?
Nem sempre. Há pessoas que não são felizes na relação com o trabalho, com as pessoas, em geral, e defendem-se com a sexualidade. É uma vicariância erótica, eu não consigo ser amada, mas sou boa na cama. Outra é a narcísica, não sinto que seja amado, mas sou admirado. São as pessoas que usam os títulos académicos.
A vaidade é sinónimo de inferioridade?
Talvez. Contrasta a vaidade com o orgulho. É uma compensação.
Os clássicos dizem que o analista é uma entidade assética. Rompe com eles?
Isso está ultrapassado. O analista só trata bem os doentes se estiver interessado, se gostar dos seus analisandos. Aqueles em que estou convicto de que vou fazer alguma coisa. Se estiver convencido que não vai resultar…
Já lhe aconteceu?
Com dois homens. Um tinha dois cursos, um de educação física e outro de filosofia, e era professor de Filosofia numa universidade e a educação física exercia na vida. Andava sempre à porrada em todos os lados, tinha uma agressividade enorme. E eu senti-me mal, aquela agressividade irritava-me. O outro era um narcísico, e eu comecei a ter sono.
É preciso ser muito paciente para se estar a ouvir os pacientes.
É preciso estar interessado naquilo que se está a fazer. Essa é a nossa função, gostamos de perceber o outro. Os meus amigos, às vezes, criticam-me, que trabalho 25 horas por semana, que só faço análise. Mas é uma felicidade fazer aquilo que se gosta, nem toda a gente consegue.
Não se reforma porque se alimenta dos seus pacientes?
O que é que eu ia fazer? Calçar as pantufas. Só escrever livros e artigos? Deixei de dar aulas na Faculdade de Psicologia porque fui obrigado, no hospital também. Aos 61 e 60 anos, respetivamente. No ISPA, estive até aos 83, parei quando começou a não me apetecer ir dar aulas.
Tem saudades?
Tenho, mas por obrigação e todos os dias não.
O divã ainda é eficaz?
Tem vantagens e defeitos. Tanto para o analista como para o analisado. A pessoa fica mais concentrada na sua vida interior, naquilo que sente, que pensa e não fica distraída com coisas externas. Perde-se a linguagem mímica, uma parte da comunicação. Há situações que são melhores no divã, o paciente consegue estar mais concentrado, mais relaxado e começa a falar da infância, de coisas íntimas. O que não se pode é ter uma atitude rígida, de que todos os doentes vão para análise, de que todos vão para o divã. Tem de se inovar e conhecer outras técnicas. Aqui há uns anos, houve uma paciente que eu vi que não era caso de análise. Passei a vê-la só uma vez por semana, porque ela tinha um luto muito patológico. A morte de uma filha única com cancro. Foi acompanhá-la um pouco, acabou ao fim de cinco ou seis meses a escrever um livro sobre a morte da filha.
E ela melhorou?
Aliviou-se. Escrever um livro permitiu-lhe sair um bocado daquele luto.
A perda de um filho é uma coisa que nunca se ultrapassa?
É muito difícil.
A sua mãe também perdeu um filho.
Tinha dois anos e eu 7. Mas era uma situação diferente, tinha nascido com uma microencefalia, nunca saiu do berço. Morreu com uma meningite fulminante. Em todo o caso marcou-a bastante.
E a si também?
Andava sempre na rua pela aldeia, mas naquela época estava muito por casa. Devo-me ter deprimido um bocado. A minha mãe estava em luto, ligava menos aos outros filhos e eu senti menos afeto. Contei ao meu analista que andava sempre à volta da casa num carro de pedais, e ele deu-me uma explicação analítica, que era o meu complexo de Édipo.
O que descobriu mais na sua análise?
A minha agressividade, ainda hoje sou mas era muito mais. Sempre fui muito contestatário, na política, com os professores. Com a minha análise e trabalho analítico isso mudou, tornei-me mais moderado.
Já se aproximou demasiado de algum paciente?
Aquela que esteve em Londres, de férias. Houve uma altura em que ela me começou a dizer que estava menos interessado nela, que desmarcava muitas sessões. Fui ver à agenda e vi que era verdade, mas racionalizei que era por ser das 20h às 21h. Depois verifiquei que também tinha outros doentes nessa hora e não desmarcava. Estava-me a interessar eroticamente por ela. Tive um sonho sexual e estava a afastar-me. Não tinha tido consciência, mas o sonho mostrava-me.
Os sonhos noturnos são memória recalcada?
São coisas que o indivíduo já pensou e não refletiu muito por elas. Estou a lembrar-me de uma colega de trabalho que achava uma mulher jeitosa, achava-lhe muita graça, mas não passava disto. A dada altura, fiz um sonho florido com ela e veio tornar mais claro, mais visível, uma coisa que eu já conhecia. O sonho, muitas vezes, revela coisas de que a pessoa não tomou consciência. Mas, outras vezes, são coisas de que já tomou uma consciência vaga e se tornam mais evidentes.
E os sonhos diurnos?
São mais importantes porque são sonhos de projeto. Quando eu imagino que poderia fazer uma conferência brilhante nos EUA, estou a construir qualquer coisa. O devaneio, o pensamento onírico, pode acontecer nos noturnos, mas acontece mais nos diurnos. Não é aquele devaneio vago que a pessoa vê nas nuvens. É um sonho mais construído em que se vê a viver noutro país, a mudar de mulher, a mudar de emprego.
Não lhes damos muito valor.
A minha teoria atual na análise é não estar muito preso ao passado, mas estar mais virado para o futuro. Para o que o indivíduo deseja e pode fazer. O sonho diurno é projeto, um trabalho sobre o futuro, o que antecipamos fazer. Nós, humanos, estamos sempre a antecipar o futuro. E por isso construímos uma família, uma civilização, escrevemos livros. Fazemos pontes para durar 200 anos.
A dor é boa para a nossa construção?
É inevitável. Existe. É um sinal de que as coisas não estão a correr bem e temos de fazer qualquer coisa para ultrapassar. A ideia da civilização judaico-cristã é a de que a dor nos esculpe a vida. Nascemos no pecado, a culpa é secundária e o principal impulso é a busca, de explorar o mundo. Depois é que vem o medo. A culpa é emoção inibitória, tal como o medo, a culpa e a vergonha.
Qual é a pior?
Todas são más. O medo é necessário, mas é preciso ultrapassar o medo. Todos nós perante uma emoção nova temos uma reação, por um lado medo, isto é algo que eu desconheço, pode ser perigoso. Por outro lado, isto é novo pode trazer coisas bestiais. Se somos mais saudáveis, predomina o entusiasmo, vamos à conquista. Se somos mais doentes predomina o medo, retraímo-nos. Varia de pessoa para pessoa e consoante o contexto da vida. Se a criança tem pais compreensivos diminui o medo e pode lançar-se na aventura.
Foi para a escola aos 8 anos, porque o seu tio achava que não valia a pena ir antes. Hoje, há várias teorias sobre educação. Não lhes damos espaço?
No meio está a virtude, diziam os latinos. É preciso protegê-las e dar-lhes capacidade de experimentarem a vida. As crianças começam aos 5 ou 6 meses a comer papas e sopas e a criança quer pegar sozinha na colher, mas como controla mal os movimentos são os pais que pegam e lhe metem na boca. E a criança, muitas vezes, faz birra. Estamos um bocado a impedir a espontaneidade. Isto não é muito útil. É bom permitir alguma autonomia, desde que ela não corra riscos demasiados. Se não correr riscos não aprende a viver.
É na infância que se fundamenta tudo?
Constroem-se as bases, não quer dizer que não sejam modificadas. Na adolescência, há uma certa reconstrução e muitas coisas são melhoradas ou pioradas. É um período que é menos conhecido. As pessoas se não viveram a adolescência ficam geralmente muito inibidas, não têm estratégias de se defender do perigo, de conquistar o mundo, de se relacionarem com familiares e estranhos, com homens e com mulheres, com negros e com brancos, com nacionais e estrangeiros.
Estamos a criar crianças para o mundo, mais cosmopolitas, mas depois não conhecem a realidade do país?
Desde o fim da II Guerra Mundial, as sociedades deixaram de ser sociedades de culpa e passaram a ser sociedades de sucesso, da performance, do desempenho. E os pais estão muito preocupados com isso, hoje é necessário para ser bom cidadão ter um bom emprego. Ainda sou do tempo em que as depressões eram marcadas pela culpa, hoje é pelo insucesso, por não terem notas para ir para a faculdade.
Como se o sucesso fosse sinónimo de felicidade?
Mas há poucas condições. Na semana passada, no jornal [notícia do caderno de Economia do Expresso] dizia que os salários baixaram 20% entre os licenciados.
O ensino limita-se à transmissão de conhecimento?
É fundamental ouvir os alunos. Saber se aquilo que se está a dizer, diz alguma coisa aos alunos, é o que eles precisam. Responder ao desejo deles. É a mesma coisa com os pais, falham quando não dão a resposta adequada. É no diálogo que as pessoas se entendem.
Temos perturbações da sociedade moderna?
É uma coisa muito discutida. Na sociedade urbana, o convívio é menor, desapareceu o convívio de bairro. Há um maior isolamento em relações mais próximas. Este individualismo leva a uma certa solidão, a um certa desconfiança, leva a paranoia, a pessoa pode ser prejudicada pelo outro. As relações afetivas são menos consistentes. São mais superficiais, menos espessas, mais finas, mais delgadas. Partem facilmente.
Vivemos, então, a tão falada crise de valores?
São outros, talvez não sejam os melhores. Dá-se valor demais a alguns saberes bacocos. Há uma exigência em determinadas coisas, se já se esteve em Nova Iorque, se já se visitou os museus todos. Lembro-me uma vez, em Madrid, ser insultado por duas colegas portuguesas. Tínhamos ido a um congresso, houve um problema e ficámos o fim de semana. Elas queriam ir ao Museu do Prado, e eu disse-lhes que já lá tinha ido uma vez e chegava. Disseram-me que era um parolo. Preferi ir ver as madrilenas nas Portas do Sol, são mais interessantes que os quadros. É uma cultura de espetáculo em que se acaba por não experienciar a vida.
Mas em pequeno também quis sair da sua aldeia, a Galafura, no Douro, e ir para um meio maior.
Fui estudar para o Porto e sempre tive o bichinho por Lisboa, onde ainda fiz um ano durante a faculdade, altura em que tive piores notas. O meu pai faleceu, eu era o filho mais velho, e voltei para o Porto. Mais tarde, houve um concurso em Lisboa, já tinha um filho e viemos para cá.
Como conheceu a Teresa, sua mulher?
Estava na tropa, em Lisboa, e a fazer um curso de medicina tropical, mas fui deslocado para Santa Margarida [Santarém] e comecei a faltar às aulas. Havia uma colega que me dava os apontamentos e estudava comigo aos domingos na pastelaria Coimbra. A Teresa era amiga dela e começou a aparecer por lá.
Como soube que era amor?
Era uma relação diferente de outras namoradas que tive. Uma coisa calma, agradável, harmoniosa
É fácil ter certezas nas relações?
Nunca se tem. Só os malucos, os religiosos é que têm certezas. Estivemos quase 60 anos casados, ela morreu em março.
Ainda está em processo de luto?
Creio que não. Nos primeiros tempos custou-me viver sozinho, mas depois habituei-me. Tenho uma vida profissional intensa, três filhos e muitos amigos. Foi um luto antecipado, nos últimos seis meses ela já não estava bem. Tinha uma diabetes que não tratava, há quatro anos ficou em insuficiência renal, estava a fazer diálise três vezes por dia. Começou a ter problemas nos membros inferiores, foi operada na aorta. Tirou um dedo do pé, depois uma perna. Estes últimos três ou quatro meses já se estava à espera, e ela própria sentia isso.
Continua a fumar?
Agora meio maço por dia, dantes fumava um ou dois.
Não tem medo de morrer?
Não é agradável, mas não penso nisso. A única coisa que receio é ficar cego ou paralítico. É pior porque a pessoa está lúcida e fica diminuída. Ainda estou bem, apesar de sentir algumas diminuições. Não consigo andar muito porque me canso facilmente. Há noite já não estou completamente lúcido como estou de manhã.
Que balanço faz da condição humana?
A parte boa: a capacidade de amar, de criar. A parte má: o egoísmo, a vaidade, a sacanice. Podemos ter tudo numa só pessoa, mas há predomínios. Há duas coisas importantes, a capacidade de nos interessarmos pelo outro, em que o mais importante são as pessoas de quem gosto. E depois há o narcisismo, os outros que se lixem. E todos nós temos um bocado dos dois. Quando somos mais saudáveis, somos melhores pessoas. Predomina a capacidade de a pessoa se interessar pelo outro, ajudar a sociedade, criar um mundo melhor. Aí também se mete a questão da morte. Quando o indivíduo tem a capacidade de deixar um legado, há uma certa imortalidade simbólica.
E o que é que leva da vida?
Vou satisfeito. Deixei alguma coisa, houve muita gente que aprendeu comigo coisas que lhes são úteis para eles, para a psiquiatria, para a psicanálise.
Fonte:
Expresso
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